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O Brasil evangélico que desafia a esquerda

A identidade pentecostal no Brasil não deve ser explicada exclusivamente pela pobreza. Trata-se de um fenômeno religioso com presença ampla. Veja a publicação original.

A group of people raising hands in a black and white concert setting, showing unity and celebration.
Artigo escrito por Raphael Corbi e Fabio Miessi

Por muito tempo, tentou-se explicar o crescimento da população evangélica no Brasil como consequência direta da pobreza. A imagem dominante era a do fiel vulnerável, buscando consolo em meio a crises econômicas. Mas os dados contam uma história mais complexa – e, em certos aspectos, mais surpreendente.

Desde 1980, os censos demográficos mostram que a presença dos evangélicos pentecostais não se limita às faixas mais baixas de renda. Eles estão especialmente concentrados nos grupos intermediários da distribuição de renda – pessoas com renda média baixa, mas superior à dos indivíduos mais pobres. A adesão entre os mais pobres, inclusive, é semelhante à observada em segmentos com renda significativamente mais alta, o que indica uma disseminação ampla da presença pentecostal ao longo das estruturas sociais.

Além disso, embora menor, a participação entre os 20% mais ricos está longe de ser irrelevante – e tem crescido de forma consistente ao longo do tempo.

Entre as décadas de 1980 e 2010, a proporção de pentecostais cresceu de forma expressiva em todas as faixas de renda. O avanço foi mais forte nos grupos intermediários, mas também ocorreu de maneira significativa entre os mais ricos. Entre os 10% do topo da distribuição, por exemplo, a adesão pentecostal em 2010 era quase quatro vezes maior do que na década de 1980.

Esses dados reforçam um ponto central, ainda pouco consolidado no debate público: a identidade pentecostal no Brasil não deve ser explicada exclusivamente pela pobreza. Trata-se de um fenômeno religioso com presença ampla, inclusive entre segmentos de renda mais alta. Ao contrário do senso comum, o evangélico típico pode ser tanto um indivíduo de renda muito baixa, em situação de grande vulnerabilidade, quanto um trabalhador com estabilidade financeira e aspirações de mobilidade social.

Outro ponto relevante é que o período de maior expansão pentecostal não coincidiu com as grandes recessões econômicas do País. Ao contrário: foi entre 2000 e 2010 – a década de maior crescimento da renda e do emprego desde os anos 1970 – que os pentecostais mais avançaram. Mais um dado que desmistifica a ideia de que o crescimento pentecostal é fruto apenas da vulnerabilidade social extrema.

Mas como explicar essa expansão? Nossas pesquisas mostram que a resposta não está apenas na fé, mas em transformações na maneira como a religião é ofertada. O modelo de templos simples, próximos das comunidades e de baixo custo, já existia. O que mudou, a partir do final dos anos 1970, foi sua massificação: multiplicaram-se igrejas pequenas, muitas vezes abertas por lideranças autônomas, sem vinculação com denominações tradicionais. Não era mais necessário passar anos em seminários ou obter reconhecimento institucional: bastava decidir abrir uma igreja. Popularizou-se um novo perfil de organização religiosa – mais ágil, com gestão própria, capaz de operar com estruturas modestas e custos reduzidos, o que facilitou sua rápida disseminação nos centros urbanos.

Em contraste, a Igreja Católica, com seu modelo centralizado e intensivo em capital, tem mais dificuldade para reagir a mudanças. A legislação também ajudou: a isenção de impostos, consolidada na Constituição federal, reduziu custos. E a mudança no Código Civil, em 2003, que equiparou igrejas a pessoas jurídicas, facilitou sua abertura e sua gestão. Criou-se, assim, um ambiente institucional favorável à proliferação de igrejas em diferentes contextos sociais.

Esses dados desmontam a ideia de que o avanço evangélico seja fruto exclusivo da miséria ou da falta de alternativas materiais. A fé continua a mover corações, mas, sem a transformação no modo de ofertá-la, o salto evangélico seria impensável. O Brasil mudou – e quem melhor entendeu as novas regras dessa mudança foi quem ocupou espaços, abriu portas e simplificou o acesso à fé.

Esse panorama ajuda a entender por que partidos políticos, especialmente à esquerda, têm dificuldade para dialogar com o eleitorado evangélico. Parte-se, com frequência, da imagem de que o evangélico é um pobre sem oportunidades, que se refugiou na fé como último recurso. Mas a realidade é mais complexa.

Os evangélicos pentecostais no Brasil incluem tanto pessoas economicamente vulneráveis quanto trabalhadores formais, empreendedores e profissionais com escolaridade média ou superior.

Conversar com esse segmento é, hoje, conversar com a população brasileira. Não há fórmula mágica nem mensagem única. Suas condições de vida e aspirações variam – e insistir na imagem de que o evangélico é alguém pobre e sem oportunidades é manter viva uma caricatura que ocupa lugar demais no debate público, mas que talvez nunca tenha refletido uma parte importante do Brasil real.

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