A proibição atual de campanhas eleitorais em templos busca garantir liberdade de crença e igualdade entre candidatos. Veja a publicação original.

A proposta de reforma do Código Eleitoral em debate no Senado pode alterar profundamente os limites entre fé e política no Brasil. Um trecho do texto, apresentado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), libera manifestações político-partidárias em templos e restringe o “abuso de poder religioso” a casos de coerção explícita. Na prática, padres, pastores e líderes espirituais poderiam apoiar candidatos em cultos e missas sem punição da Justiça Eleitoral.
A mudança atinge um pilar constitucional: a separação entre Estado e religião. Desde a proclamação da República, o Brasil é um estado laico — princípio reafirmado pela Constituição de 1988. A proibição atual de campanhas eleitorais em templos busca garantir liberdade de crença e igualdade entre candidatos, evitando que púlpitos virem palanques.
A experiência dos Estados Unidos, também um Estado laico, pode ser um bom modelo. Embora a religião tenha presença marcante na vida pública americana, a Primeira Emenda da Constituição veda o endosso explícito de candidatos por igrejas isentas de impostos. Desde 1954, a Emenda Johnson prevê a perda desse status para entidades que descumprirem a regra. A fiscalização afrouxou, mas a norma ainda serve como barreira simbólica. Igrejas podem organizar debates e incentivar o voto, mas não pedir votos. Nem nos anos Trump, com pressão para derrubar essa regra sob o pretexto da “liberdade religiosa”, o Congresso cedeu.
A proposta brasileira vai além. O texto proposto afirma que manifestações político-partidárias em templos “não poderão ser objeto de limitações”, passo que nem a direita religiosa americana conseguiu dar. No Brasil, forma-se um círculo vicioso: o apoio de líderes religiosos impulsiona candidaturas que, ao se eleger, ampliam o poder político das igrejas e promovem mudanças legais que reforçam essa tendência. O crescimento da bancada evangélica ilustra como essa dinâmica pode ampliar a influência religiosa no Legislativo, com efeitos sobre a separação entre fé e Estado e sobre as condições de concorrência política.
Permitir campanhas eleitorais em templos gera riscos interligados. Eleitoralmente, rompe a igualdade entre candidatos ao permitir acesso privilegiado a grandes audiências. Socialmente, aumenta o risco de pressão indevida sobre fiéis. Institucionalmente, ameaça a laicidade ao instrumentalizar espaços religiosos — isentos de impostos e de grande influência moral — em favor de candidaturas.
Abre-se também uma assimetria regulatória. Enquanto ONGs, sindicatos e associações seguem submetidos a controles rígidos, igrejas ganhariam liberdade para atuar como canais de campanha, sem transparência plena. Nos Estados Unidos, especialistas alertam que revogar a Emenda Johnson tornaria as igrejas “caixas-pretas” de financiamento político — risco que o Brasil antecipa se afrouxar seus controles.
É verdade que os limites entre religião e política sempre geraram tensão. Mas há diferença entre discutir exceções e abolir a regra. Nos Estados Unidos, pergunta-se se a muralha é alta o bastante. No Brasil, propõe-se derrubá-la.
O debate não se resume a uma fé. A clivagem principal é entre instituições com acesso regular a púlpitos e aquelas que não têm. Campanhas em templos favorecem qualquer grupo com fiéis reunidos, independentemente do conteúdo teológico.
Mesmo em sociedades religiosas, a prudência institucional protege o processo eleitoral. No Brasil, ainda há tempo para refletir. Antes de eliminar limites, o Congresso precisa avaliar os custos: para a competição democrática, para a laicidade do Estado e para a liberdade de consciência dos próprios fiéis.
Laicidade não é hostilidade à fé. É a garantia de que o Estado não privilegia nenhuma religião ou visão de mundo em detrimento de outras e de que nenhuma crença será usada como atalho para o poder. Misturar devoção e eleição pode custar caro — para a democracia, para o Estado e para a religião.
*Raphael Corbi, ph.D. em economia pela London Business School, é professor titular da FEA/USP e pesquisador do Cerp/USP; Fabio Miessi, ph.D. em economia pela London School of Economics, é professor da EESP-FGV e pesquisador do Cerp/USP; Meliza Marinelli Franco, doutora em Direito do Estado pela USP, é advogada e pesquisadora do Cerp/USP
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